Um estrago silencioso na educação

VEJA • 19 de agosto de 2019

Os recentes cortes no orçamento do MEC afetarão um setor menos alardeado, mas fundamental: o ensino para quem não conseguiu finalizar a educação básica


André Ronaldo, de 28 anos, é aluno da EJA do Colégio Santa Cruz. (Claudio Gatti/VEJA)

Há um dano silencioso em torno das recentes decisões do Ministério da Educação e Cultura (MEC), que vão além do contingenciamento de verbas para as universidades federais e o recente corte de 348 milhões de reais do lote destinado à produção e distribuição de livros didáticos.

O governo de Jair Bolsonaro interrompeu, ao menos provisoriamente, as atividades da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi), responsável por gerenciar uma das iniciativas mais interessantes, delicadas e necessárias do ensino brasileiro: a Educação de Jovens e Adultos, conhecida por sua sigla EJA. A modalidade é oferecida por escolas do ensino fundamental e médio para o público acima de 15 anos que não conseguiu finalizar a educação básica.

Nos anos 1970, a EJA era mais conhecida como “ensino supletivo”. Mudou de nome, se aperfeiçoou e, nos anos 1980, ganhou musculatura. Recentemente, contudo, começou a atravessar sérios problemas de gestão. Nos últimos 10 anos, um terço das escolas que ofereciam o ensino fundamental para o programa abandonaram o serviço por falta de investimento. No atual orçamento destinado à educação na EJA, o valor estimado para cada estudante é de exatos 2.870,94 reais – trata-se da única modalidade de ensino em que cada aluno recebe menos de 3.500 reais do Estado, de acordo com o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb).

O impacto do sucateamento foi traduzido nos dados divulgados pelo Censo Escolar de 2018: o número de matrículas da EJA diminuiu 1,5%, totalizando apenas 3,5 milhões de estudantes matriculados no ano passado. O número é extremamente baixo para um país que, em 2017, tinha 11,5 milhões de pessoas analfabetas acima dos 15 anos de idade, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Resultado concreto: a taxa de alfabetização da população acima de 15 anos ainda está abaixo do previsto. A meta a ser atingida em 2015 era de 93,5%; em 2019, quatro anos após o fim do prazo, essa porcentagem está em 91,5%. Isso significa que as metas estabelecidas pelo Plano Nacional da Educação (PNE), cujo objetivo é acabar com o analfabetismo absoluto e reduzir em 50% o analfabestismo funcional, dificilmente serão atingidas até 2024, quando termina o prazo para alcançá-las.

Para Nilson José Machado, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), os prazos para atingi-las são exageradamente longos. “Tudo é com prazo de 10, 20 anos. Os projetos deveriam ser cobrados em no máximo cinco anos”, diz Machado. “Mas seria fundamental haver envolvimento de toda a sociedade, com a realização de parcerias público-privadas e maior participação das escolas e universidades”.

Colégio Santa Cruz

Pode-se medir a relevância da educação de jovens e adultos numa instituição tradicional como o Colégio Santa Cruz, em São Paulo, onde estuda a classe média alta da cidade. A atenção destinada às pessoas que não puderam se formar é um belo exemplo de empenho e compreensão da importância de levar a zero o analfabetismo. Fundada em 1974, a EJA do Colégio Santa Cruz foi o primeiro supletivo aprovado no Estado de São Paulo, dedicado à escolarização de um público com acesso tardio à educação formal. Em 2012, a instituição expandiu a oferta de cursos noturnos e incluiu programas de Educação Profissional – ensino de formação técnica de nível médio em Administração e Logística.

O curso é oferecido gratuitamente no período noturno. A EJA do Santa Cruz atende, semestralmente, 450 alunos em busca de alfabetização e dos currículos dos ensinos Fundamental e Médio. Somados aos 150 integrantes da Educação Profissional, são, portanto, 600 bolsistas vinculados aos cursos noturnos do colégio. A evasão que, na média brasileira da EJA, chega a 50%, na escola paulistana cai para 20%. “Além de todo o suporte educacional, é necessário incluir alimentação, transporte, saúde, suporte jurídico e até mesmo creche”, diz o educador Fernando Frochtengarten, diretor de cursos noturnos do colégio Santa Cruz. “Só assim o trabalhador vem estudar”.

O auxílio para o transporte é o que permite ao ex-subgerente de fliperama André Ronaldo da Silva, de 28 anos, continuar na escola apesar de estar desempregado há quase dois anos. “Aqui na escola eu sei que estou trabalhando a minha mente, estou construindo meu futuro”, diz Silva. “No restante do meu dia saio para procurar serviço, mas nada acontece. Isso me desanima um pouco da vida”. Apesar da desilusão, ele faz planos de futuro: “Quero entrar na faculdade de Ciência da Computação e Tecnologia da Informação”.

Para Frochtengarten, o EJA só conseguirá, de fato, atingir seu pleno objetivo e alcançar toda a população que precisa da educação básica se as políticas voltadas para a modalidade forem planejadas em torno do reconhecimento da singularidade desse grupo. Isso significa oferecer currículo e metodologia próprios, com professores formados para atender especificamente esse público. “Uma das características da EJA é a diversidade do público que atende, por isso uma das tarefas de gestores e educadores é partir da realidade social em que ela está inserida”, diz ele. Trata-se de ir muito além dos livros e da sala de aula – e essa condição é o que constrói a beleza e as dificuldades do ensino para jovens e adultos, agora negligenciados pela atual postura do MEC.

Notícia publicada no site VEJA, em 16/08/2019, no endereço eletrônico: https://veja.abril.com.br/educacao/um-estrago-silencioso-na-educacao/


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