A proximidade do Direito a Distância: análise das controvérsias sobre a criação de cursos de graduação em Direito na modalidade EAD

ARTIGO - ANDRÉ TRINDADE • 27 de agosto de 2019

1 INTROITO

O ensino a distância tem se demonstrado uma ferramenta de construção da cidadania ao possibilitar o acesso ao ensino de qualidade em regiões que não possuem condições de oferta regular do ensino presencial. Além disso, possibilita ofertar formação de alta qualidade com renomadas autoridades científicas. Tal é a importância do ensino a distância que o legislador autorizou sua oferta a todos os níveis de ensino, da educação básica ao doutoramento.

A modalidade de ensino a distância é regulada/autorizada pelo sistema educacional brasileiro e tem por objetivo ampliar a oferta do ensino a todos os níveis de instrução. É notório que o Estado não tem condições de adimplir na íntegra o direito à educação, impossibilitando, de tal modo, muitas pessoas de obter formação. A própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação afirma que “o Poder Público incentivará o desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino a distância, em todos os níveis e modalidades de ensino, e de educação continuada” (art. 80). Verifica-se, de tal modo, o interesse estatal no ensino a distância como instrumento de democratização do ensino.

A construção do conhecimento jurídico impõe, todavia, certos requisitos para que se garanta a qualidade do graduado. A Resolução CNE/CSE 09/2004 institui as diretrizes curriculares nacionais dos cursos de graduação em direito e delimita os elementos essenciais à manutenção da excelência na formação do jurista. É nesse contexto que o presente ensaio visa avaliar os pontos de contato e colisão entre a manutenção da qualidade do ensino jurídico e sua oferta na modalidade a distância. Para tanto, optou-se por realizar um estudo comparativo sob diversos aspectos.

2 É POSSÍVEL CRIAR UM CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO A DISTÂNCIA? COMO?

O ensino jurídico hodierno deve ser pautado por uma aprendizagem que ultrapasse as práticas fomentadas pela escola de Coimbra que centralizava seu modelo de ensino em “salas de aula lotadas com alunos silenciosos ouvindo longas explanações”.2 Para que o ensino jurídico acompanhe as evoluções da sociedade, deve atuar com o trabalho de grupos focado na solução de problemas.3 Nesse contexto, o ensino de direito a distância pode ser avaliado como uma modalidade adequada às novas necessidades pedagógicas?

O ensino a distância pode ser desenvolvido de diversas formas. A mais adequada à formação jurídica é o modelo Bimodal e Multimidiático. Nessa modalidade o acadêmico deve comparecer regularmente ao polo de apoio presencial para acompanhar as aulas ministradas no polo central da universidade. A interação entre o aluno e o professor é garantida pela possibilidade de contato durante a aula, através de áudio e perguntas dirigidas. Além disso, o aluno participa de chat para discutir os conteúdos ministrados e sanar dúvidas geradas. O contato do aluno com o professor também pode ser estendido após as aulas por sistema de tele ou vídeo conferência. Cada disciplina possui tutores com formação adequada que auxiliam o docente responsável pela disciplina e o aluno na construção do conhecimento.

Cada disciplina deve possuir material didático que possibilite o acompanhamento das aulas. Tal material não substitui a bibliografia especializada nem deve ser um limitador do processo de busca do conhecimento, mas sim um norteador que elenca os conteúdos essenciais ao acadêmico. A bibliografia deve comportar, além da básica e complementar, obras que aprofundem as especificidades do conhecimento jurídico.

As disciplinas que compõem uma proposta de projeto pedagógico de curso de graduação em Direito na modalidade a distância devem seguir as diretrizes previstas na Resolução CNE/CSE 09/2004. Para Machado, “o projeto pedagógico deve promover uma formação mais ampla, de cunho geral e humanístico, ao mesmo tempo em que deve propiciar o conhecimento técnico necessário ao desempenho efetivo da profissão jurídica.”4 Tal previsão pode ser perfeitamente adimplida pela modalidade a distância, uma vez que as tecnologias de informação e comunicação possibilitam as interações entre os participantes do processo de construção do conhecimento (alunos, professores, tutores...). Tais requisitos são atendidos pelo sistema de Ensino a Distância que possibilita a captação de aulas em diversas partes do globo. Esse facilitador permite ofertar aos alunos aulas com professores locados em centros de excelência acadêmica. Esse professor, todavia, deve possuir um perfil adequado ao uso das tecnologias de informação e comunicação.5 É possível, com tal tecnologia, transmitir para todo o território brasileiro uma aula ministrada na Europa com uma diferença de apenas três segundos do tempo real. Essas inovações permitem a redução das barreiras do tempo e do espaço na prática pedagógica jurídica, mantendo sua qualidade.

O estágio de prática jurídica garante ao aluno a integração da formação acadêmica com a realidade profissional. O estágio é componente curricular obrigatório e deve ser desenvolvido em ambiente adequado à operacionalização das práticas inerentes ao perfil profissional almejado pelo curso. A prática jurídica nos cursos de Direito, ofertados na modalidade a distância, deve ser desenvolvida nos polos de apoio presencial, com estrutura humana e física sufi ciente à integração dos conteúdos ministrados nos bancos escolares com as necessidades inerentes ao operador do direito. De tal modo, o polo de apoio presencial deve ofertar Núcleo de Práticas Jurídicas composto de docentes habilitados a orientar os acadêmicos nas práticas simuladas e reais. O conhecimento prático dos procedimentos inerentes ao direito adjetivo, aliado ao direito material, é indispensável ao referido docente e permite ao acadêmico a inserção de seus conhecimentos na realidade regional.

Além do Núcleo de Prática Jurídica, parte do estágio pode ser realizado, mediante convênio, em entidades e instituições que atuam diretamente no labor jurídico. Órgãos do Poder Judiciário, Ministério Público, escritórios de advocacia e demais instituições que permitam ao estudante realizar estágio de formação. Assim como no ensino exclusivamente presencial, o estágio realizado em convênio exige a supervisão das atividades realizadas e a apresentação de relatório que as descreva e as registre.

Outro elemento que compõe a formação do aluno são as atividades complementares. Tais atividades têm por objetivo enriquecer o currículo acadêmico possibilitando, ainda, a interdisciplinaridade no processo de formação do aluno de direito. As atividades complementares compõem a parte flexível do currículo acadêmico e permitem ao aluno compor o mosaico de sua formação.6 Tanto no ensino presencial como no ensino a distância, as atividades complementares desenvolvem habilidades que qualificam o currículo acadêmico. Nesse ponto, o ensino a distância pode ofertar atividades que dificilmente seriam possíveis na modalidade presencial. Como, por exemplo, um debate envolvendo acadêmicos de diversas localidades sobre as práticas e inovações jurídicas de suas regiões. Nesse mesmo sentido é o desenvolvimento de atividades de extensão. Acima do assistencialismo encontrado em muitos ambientes educacionais, a extensão no curso de Direito tem por escopo a integração da comunidade acadêmica com a sociedade em que está inserida, utilizando os conhecimentos aferidos pela pesquisa e pelo ensino como elementos de transformação da realidade social. Nesse contexto é que o ensino a distância pode servir de facilitador ao criar projetos de extensão que ultrapassem a realidade local e contemplem os atores de todo seu território de inserção. O acompanhamento dos alunos pode ser realizado por meio do Ambiente Virtual de Aprendizagem que permite e favorece a interatividade necessária aos processos educativos.

A pesquisa no ensino de direito pode ser descrita como o processo de atividades voltadas para a construção do conhecimento jurídico através da solução de problemas.7 Também nessa seara o ensino a distância pode apresentar inovações. Isso decorre da facilidade em obter fontes através das tecnologias de informação e comunicação. Além do acesso facilitado às fontes, o pesquisador pode utilizar a rede de polos de apoio presenciais para executar pesquisas de campo com as regiões abrangidas pelo curso. A construção compartida do conhecimento, voltada para a solução de problemas que envolvem a sociedade, deve ser o ponto de partida de toda pesquisa científica, rompendo, assim, os grilhões que nos prendem a um “eurocentrimo” muitas vezes desconectado com as necessidades da terras brasílis. Uma proposta de pesquisa tupiniquim que procure sanar nossos problemas jurídicos e, mantendo os rigores científicos, pode muito bem ser desenvolvida através do ensino a distância.

Ao término do curso, o aluno de Direito deve apresentar trabalho de conclusão. Tal trabalho tem por objetivo criar as competências para que o aluno gere conhecimento. A monografia jurídica não é a única forma de apresentação do trabalho de conclusão de curso, apesar de ser a mais usual. Na modalidade a distância, o aluno pode desenvolver seu trabalho de conclusão de curso com as mesmas ferramentas adotadas no ensino presencial. Da discussão inicial do projeto com o orientador à defesa em banca. Possibilitando, ainda, a participação de pessoas de diversos locais na banca de avaliação e permitindo, assim, significativas contribuições ao relatório final.

O processo de avaliação dever servir como elemento de identificação do perfil do aluno. A modalidade a distância permite um contínuo processo de avaliação, mesmo fora do horário de aulas, uma vez que disponibiliza um ferramental capaz de apoiar o processo de autoaprendizagem ao mesmo tempo em que permite aos docentes/tutores avaliar o conhecimento auferido pelo aluno. A avaliação e a aprendizagem se fundem em um único processo cognitivo. Tal processo deve ser voltado para a formação jurídica, e não para a memorização de leis.8 De tal modo, a modalidade de educação a distância apresenta mais instrumentos de avaliação que a presencial, sem perder a capacidade de interação com o aluno.

Para o desenvolvimento do ensino jurídico na modalidade a distância, deve-se garantir uma estrutura física mínima. Além de salas de aula para os encontros presenciais, devem-se disponibilizar laboratórios de informática compatíveis com o número de alunos e núcleo de prática jurídica capaz de efetivar o atendimento das práticas reais e simuladas. As bibliotecas dos polos presenciais devem possuir uma vasta bibliografia que permita o acesso aos manuais das disciplinas e à pesquisa em obras de aprofundamento do conhecimento jurídico. Outro facilitador nessa seara é a criação de bibliotecas virtuais com obras de domínio público, teses, dissertações e demais fontes de pesquisa.

O principal elemento para a viabilidade da criação do curso de Direito na modalidade a distância é o perfil do aluno. O aluno deve possuir uma capacidade intelectual diferenciada para acompanhar o curso. A aptidão para autoaprendizagem é um elemento essencial ao perfil do graduando em Direito. A postura crítico-reflexiva dos bacharelandos é pautada pelo fomento à aprendizagem autônoma e dinâmica como elemento imperioso ao processo de ensino continuado. Assim, a formação humanística e axiológica disseminada pelo curso deve nortear o caminho para a gênese de um profissional engajado com a prestação da justiça e o desenvolvimento da cidadania. O curso deve possibilitar a inserção do bacharelando no meio laborativo com as competências e habilidades necessárias para administrar os obstáculos e dificuldades atinentes à sociedade dotada de uma multiplicidade cultural e valorativa, de molde a possibilitar ao egresso a aplicar de tais competências.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS: QUEBRANDO PARADIGMAS

Do todo analisado, resta a síntese de que a criação do curso de graduação em direito na modalidade a distância é factível. Contemplando a tríade universitária – ensino, pesquisa e extensão –, a modalidade de ensino a distância bimodal e multimidiática cumpre os desígnios normativos e pedagógicos propiciando elevar a formação dos acadêmicos ao maior grau de interação com a realidade social. Apregoa-se, ainda, que o projeto de curso em tal modalidade coaduna a formação humanística com foco na realidade regional. O pensamento global com foco no desenvolvimento local deve ser a base formativa proposta pelo curso de direito na modalidade a distância, integrando Universidade e comunidade através de projetos que possibilitem o desenvolvimento regional. Cria-se, de tal modo, um fluxo contínuo de interação entre os bancos escolares e a sociedade local que, acima de destinatária da atuação do egresso, é fomentadora principal das linhas valorativas e do perfil profissional adotados pelo curso.

Como proclamou o poeta da revolução mexicana, “Caminante, no hay camino, se hace camino al andar”. O caminho do Direito passa pela adoção de novas modalidades de ensino. Assim como o próprio Direito, seus operadores e estudiosos são elementos que compõem um sistema em constante mutação. Devemos, assim, observar o curso de Direito como um instrumento de construção da cidadania que possibilite espraiar a toda a sociedade a voz da democracia. Se não estivermos aptos a criar essa modalidade de ensino agora, temos a certeza da proximidade do Direito a distância. (...)

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Artigo publicado na Revista Direito e Democracia, v.11, n.1, jan./jun. 2010, pág. 13-18.


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