'Conquistamos o ensino superior. Agora, queremos os bons empregos', diz engenheiro que fundou start-up para inclusão de negros no mercado

O GLOBO • 12 de janeiro de 2022

Fonte da Notícia: O GLOBO
Data da Publicação original: 09/01/2022
Publicado Originalmente em: https://oglobo.globo.com/economia/conquistamos-ensino-superior-agora-queremos-os-bons-empregos-diz-engenheiro-que-fundou-start-up-para-inclusao-de-negros-no-mercado-25346609

RIO - Nunca se falou tanto em diversidade racial nas grandes empresas, que têm recorrido a consultorias especializadas para estruturar programas de inclusão. Uma delas é a Empodera, criada em 2016 pelo engenheiro Leizer Pereira para fazer a ponte entre jovens negros e o mercado de trabalho.

Nascido em uma família negra da Baixada Fluminense, ele trocou uma longa carreira em multinacionais, onde sempre foi uma exceção, pela start-up que nasceu de um trabalho voluntário na ONG Educafro, pioneira na luta por cotas raciais em universidades.

Por meio de uma plataforma digital, a Empodera cadastra e treina universitários para abastecer processos seletivos com perfis distintos do padrão masculino, branco e de classe alta. Além da diversidade racial, foca no recrutamento de profissionais com deficiência, mulheres e pessoas da comunidade LGBTQIA+.

A empresa faturou cerca de R$ 3 milhões em 2021, o triplo do ano anterior, e diz já ter empregado mais de 1.500 jovens em gigantes como Google, Coca-Cola, Ambev, Santander, Itaú, JP Morgan e Bayer.

Em entrevista ao GLOBO, Pereira diz que programas de trainees exclusivos para negros são capazes de acelerar a diversidade racial em cargos de liderança, mas não vê empresários envolvidos na defesa das cotas em universidades públicas, cuja continuidade será debatida no Congresso em 2022.

“Colide com a tal meritocracia. É uma coisa complicadíssima de mudar na cabeça deles”, diz o empresário. Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

O que faz a Empodera?

É uma aliada das empresas na construção e aceleração de negócios diversos e inclusivos.

A Empodera estima alta de 200% no faturamento em 2021. O que isso diz sobre a demanda das empresas na área de diversidade?

Em primeiro lugar, um amadurecimento dessa agenda, que acelerou. A pandemia escancarou mazelas, forçando um engajamento das empresas nas questões sociais. O caso George Floyd (cidadão negro assassinado por policiais brancos nos EUA) colocou o racismo no centro.

Aumentou a barra para as empresas, que tiveram que trocar a camisa PP por uma GG de responsabilidade social. De fato, 2021 foi o ano mais especial da Empodera, aumentando equipe e investindo em tecnologia e marketing, o que não tínhamos condições de fazer.

Por que as companhias precisam de ajuda para criar programas de diversidade?

A gente tem um desafio como geração, que é criar um modelo de país sustentável e inclusivo, com oportunidades para que todos possam se desenvolver.

O problema é mudar o mindset de quem detém o poder hoje, que ainda não entende que tem que ser para todo mundo. Essa mudança ainda está em construção, mudar o status quo no Brasil é difícil.

Por que só agora as empresas parecem interessadas em diversidade racial?

O que estamos vivendo nas empresas hoje é a onda que bateu na praia da universidade no início dos anos 2000, de inclusão e diversidade. Agora a onda bate muito forte na praia das companhias. Conquistamos o ensino superior, agora queremos o mercado de trabalho, os bons empregos, atuar nas grandes empresas.

Nas ações afirmativas, a universidade e o próprio setor público andaram com as cotas. Empresas pouco fizeram. Como essa agenda era mais madura na Europa e nos EUA, vem pressão das matrizes das multinacionais que atuam no Brasil. Por isso esse movimento aqui ainda é muito liderado por elas.

As empresas nacionais ainda estão um passo atrás. Há 85 mil grandes empresas no país, mas estamos falando de diversidade nas 500 maiores. Ainda estamos no início de uma longa jornada.

“Programa de trainee só para negros é uma forma de acelerar a formação de executivos. Em dois anos ele vira um “gerentinho”, lidera projetos, tem equipe e tudo. Daqui a pouco vira diretor. É uma escada rolante, enquanto os outros estão numa normal.”

LEIZER PEREIRA

CEO da Empodera

Qual é o peso da pressão de investidores e consumidores?

As mudanças não vêm com flores. Há uma nova lógica no mundo dos investidores, o ESG (sigla em inglês para políticas ambientais, sociais e de governança).

Há uma cobrança para que as empresas façam uma transformação cultural. Investidores acham que o monte de homem branco de mais de 50 anos no topo das empresas não está sabendo transformar seus negócios, as start-ups estão comendo pelas beiradas.

Há empresas que já atrelam resultados de diversidade a bônus dos executivos. Mexe no bolso. Há também líderes entendendo que diversidade tem a ver com o negócio.

Por que é bom para o negócio?

É possível atrair mais talentos, fortalecer a marca, atingir novos mercados na era do consumo consciente. O Instituto Locomotiva aponta R$ 1,7 trilhão de black money (potencial de consumo dos negros). Tem dinheiro na mesa.

O que já viu mudar nas empresas em que atua?

O tema foi parar num lugar que não se imaginaria, mas os líderes empresariais apenas ouviram falar. Entender é outra coisa. Vai do que está alheio ao que tomou conhecimento, para depois chegar ao consciente. Aí vem do engajado ao que se torna agente de transformação. Essa é a curva.

A maioria está no estágio básico. O cara vive na Faria Lima (centro financeiro de SP), como vai entender quilombo, ribeirinho, favela, a complexidade de ser negro? O maior desafio é preparar e engajar lideranças.

“O cara vive na Faria Lima (centro financeiro de SP), como vai entender quilombo, ribeirinho, favela, a complexidade de ser negro? O maior desafio é preparar e engajar lideranças”

LEIZER PEREIRA

CEO da Empodera

O que mais faz falta?

Este é um tema que perpassa todas as áreas da empresa, mas aí chega um iluminado e acha que é problema do setor de Recursos Humanos. O RH tem protagonismo, mas a empresa precisa ter gente engajada em todos os níveis, sistematizar e revisar políticas, comitê de diversidade, governança, investimentos, metas.

É óbvio em qualquer projeto, mas, por alguma razão, programas de diversidade não nascem assim. Não têm estrutura, não são perenes. As pessoas saem, e o programa se desmonta.

Programas de trainees só para negros funcionam?

Os programas de trainee preparam pessoas para assumir posição de liderança em pouco tempo. Aí o Magalu e a Bayer colocaram na mesa, em 2020, o programa de trainees negros. Por que gerou tanto ruído, se já fazíamos o estágio para negros do Google ou da Ambev?

Porque é uma disputa por espaços de poder e privilégio. Uma parcela da sociedade ficou furiosa porque esse espaço passa a ser compartilhado com pessoas negras, com o que a turma no poder não está acostumada. É sim uma forma de acelerar a formação de executivos.

Pega um jovem recém-formado. Numa trilha muito acelerada, em dois anos ele já vira um “gerentinho”, lidera projetos, tem equipe e tudo. Daqui a pouco vira diretor. É uma escada rolante, enquanto os outros estão numa normal.

São quatro mil vagas de trainee por ano no Brasil. É muito disputado. Quem pega uma vaga geralmente é o jovem branco da elite. Os negros trainees, num processo com jovens brancos, provavelmente não seriam selecionados.

Além de selecionar, o que a empresa tem de fazer para garantir a geração de líderes?

Outro problema é a capacidade de atração dos candidatos, ter uma marca empregadora que dialogue com jovens negros. Quem disse que esse jovem está preparado para fazer um pitch (discurso em entrevista) num processo seletivo se não sabe o que é isso?

A faculdade não ensina nem a mãe dele sabe. Por isso é que atuamos também na preparação dos jovens para a seleção, no projeto escola de trainees. É uma forma de selecionar as melhores pessoas, mas também de dar oportunidade de desenvolvimento para todos.

Em 2022, está prevista no Congresso a revisão da lei de cotas em universidades. Isso interessa às empresas, que precisam contratar mais negros? Elas atuarão no debate?

Vai ser um desafio. Não se abriu ainda um grande debate sobre os resultados das cotas. Talvez porque esteja funcionando. Tem coisa para melhorar, claro, mas mexer com privilégio sempre dá ruído.

Partindo do princípio de que há pessoas bem-intencionadas na liderança das empresas, é preciso reconhecer que estão sob uma cultura racista. Não significa que acordem todo dia querendo prejudicar os pretos. É por ignorância, visões de mundo distorcidas.

Há um ranço dessas pessoas em relação às cotas. Não estão preparadas para discutir reserva de vagas nas empresas. Acham que estão “baixando a régua” para colocar pessoas não preparadas, mas não é isso.

Estamos querendo colocar gente boa, que, por questões estruturais, vêm com alguns gaps (lacunas), e aí as empresas têm a responsabilidade de supri-los e dar oportunidade a todos.

Qual é a maior resistência?

Acreditam que (a cota) colide com a tal meritocracia. É uma coisa complicadíssima de mudar na cabeça deles. Só que, num país que é o segundo mais desigual do mundo, querer que essas pessoas entendam de equidade é algo muito sofisticado.

Acham que o vestibular é único, mesma prova para todo mundo: passa quem merece mais. Não consideram as circunstâncias do ponto de partida de cada um. Um jovem tem três refeições por dia, estuda no Bandeirantes (escola privada de SP) com professor particular, internet, tudo em cima. O outro não tem nada disso. E aí aquela prova única é o cálice da meritocracia?

Então como acha que as empresas vão se posicionar na discussão sobre as cotas em universidades em 2022?

A liderança pessoalmente não gosta. Poucos se convenceram de que a cota é boa, mas, do ponto de vista de marca, a empresa será pressionada.

Terão que fazer uma manifestação, para justificar sua posição. Mas não porque as lideranças estão compradas de que é o ideal para o país. É uma ingenuidade achar que estão.

Lido todos os dias com estes senhores e senhoras. É de espantar a desconexão com o mundo real. Esse ainda é o maior desafio.

O que os jovens negros formados precisam aprender que não é técnico para atuar no mercado corporativo em igualdade com os brancos?

Não adianta só ser o primeiro da família entrar na faculdade, sentar na sala de aula, estudar e tirar as melhores notas. No primeiro dia ele já deveria estar se preparando para os processos seletivos. Deveria ter mentores para ajudar no planejamento de carreira.

Precisaria entender o que são os chamados soft skills (habilidades sociais). As empresas contratam pelo currículo e demitem pelo comportamento.

Na era da inovação, as empresas estão esperando criatividade, inteligência emocional, tomada de decisão, raciocínio lógico e uma série de novas habilidades dessa tal indústria 4.0, como ser orientado por dados.

A universidade só dá o conhecimento técnico. O que exigir da família do jovem negro se ninguém dela pisou no mundo corporativo? Ele sofre uma dificuldade gigantesca para conseguir estágio.

Corre o risco de se formar e encarar o desemprego ou o subemprego, comprometendo todo o projeto que a gente construiu no país.

Não fizemos uma política de cotas durante 15 anos para produzir uma massa de subempregados, mas essa é a realidade dos jovens, cujo índice de desemprego é 30%, o dobro da média.

A universidade está jogando um milhão de formados todos os anos, mais negros, mais mulheres, mais indígenas, pessoas com deficiência. Mas essas pessoas não estão sendo absorvidas pelo mercado de trabalho. É um erro.

O senhor já foi executivo em grandes empresas, e agora conversa com executivos sobre diversidade. Que estereótipos ainda ouve sobre profissionais negros?

Eu mostro para eles uma foto de uma favela e pergunto o que veem lá. Eles falam: pobreza, miséria, violência, falta de oportunidade. Ficam dez minutos só falando de escassez. Foram raríssimas as vezes em que alguém conseguiu falar potência, oportunidade, mercado, gente boa, criatividade, cultura.

Aí eu troco a foto por uma de uma menina negra da favela. E pergunto: o que você vê na Fernanda, então? Ela é uma menina da Rocinha. Ela não tem intercâmbio, Excel, não estudou em faculdade de primeira linha. Só que essa menina aqui tem características e potencial para ser sua melhor trainee, mas você precisaria enxergar isso nela.

Aí eles ficam assim... Eu digo: a sua visão de mundo sobre favela e negros afeta a sua decisão porque você só vê escassez na Fernanda. Não enxergar valor, achar que é baixar a régua, que é assistencialismo.

Essa é a confusão que a turma faz. Falta a essas pessoas dedicarem tempo, energia, dinheiro, recurso para a coisa acontecer. Tem muito discurso, mas pouca ação prática. Esse é o resumo.


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