No Supremo, Direito é igual para todos, inclusive para o MEC

CONJUR • 25 de abril de 2024

Fonte da Notícia: CONJUR
Data da Publicação original: 25/04/2024
Publicado Originalmente em: https://www.conjur.com.br/2024-abr-25/no-supremo-direito-e-igual-para-todos-inclusive-para-o-mec/

Há um debate interminável sobre a oferta de cursos de medicina. Enquanto isso, há uma deficiência no sistema de saúde e estudantes locais buscando formação médica no exterior. A sociedade brasileira perde de todas as formas, a receita, o controle social e administrativo dos cursos e, principalmente, os profissionais formados, que seriam essenciais para que o país atingisse um número de médicos por habitantes mais condizente com as necessidades sociais.

O Ministério da Educação vem se esforçando para implementar mudanças em 2024. No entanto, ainda precisa agir conforme o direito no exercício de seu papel regulatório. O tema é debatido no Supremo Tribunal Federal, no contexto da ADC 81 e da ADI 7.187.

Decidiu-se em favor da política pública do programa Mais Médicos, que só permite a abertura de novos cursos de graduação em medicina por meio de chamamentos públicos. O programa Mais Médicos é ótimo; o problema é que se corre o risco de uso do programa para restrições desmedidas para oferta de educação médica, tornando o problema um dilema de mercado.

A decisão do STF foi muito bem fundamentada, como de fato são as decisões da Suprema Corte e do ministro relator do caso, Gilmar Mendes. A articulação de regras sobre saúde e educação é motivação poderosa a favor da política pública, apesar da prática — com moratórias, atrasos e lances concorrenciais — dar espaço a controvérsias jurídicas.

Na decisão, uma cautelar concedida em 7 de agosto e complementada em 22 de dezembro de 2023, o STF vedou novas ações para abertura de protocolo e criou regras de transição — tratadas como modulação pelos envolvidos. As regras de transição imprimem o conteúdo das cautelares deferidas. Pode haver necessidade de aprimoramentos. Em virtude da prática adotada pelo MEC desde 2012, há uma tendência recorrente de restrições ao andamento de pedidos de autorização de Medicina.

Regras e o risco da modulação

A decisão cautelar modulou efeitos conforme o fluxo dos processos administrativos. Processos que estavam além da fase de análise documental deveriam ser analisados pelo MEC e os que já possuíam portarias foram validados. Processos que não contemplassem análise documental concluída seriam sobrestados e, ao final, podem até ser extintos.

Trata-se de diretiva provida de racionalidade, por valorizar os cursos com “viabilidade mínima” constatada pelo órgão regulador. Porém, a modulação mais corriqueira relaciona os efeitos das decisões do STF às datas de propositura das ações judiciais — por exemplo, permitindo que processos distribuídos até tal ou qual data tenham seguimento.

Importante ressaltar que a abordagem no caso dos cursos de medicina não tem nada de incorreto ou de ilógico. Contudo, a modulação a partir do fluxo dos processos administrativos deu à administração pública um poder que exige responsabilidade, isenção e imparcialidade. O risco, no caso das autorizações de Medicina, era que o MEC interferisse no ritmo dos processos de autorização e tentasse impor seus interesses à revelia dos direitos garantidos pela cautelar.

E isso, de fato, pode ter ocorrido. Há procedimentos que transcorreram de forma lenta, ou antes dos quais houve descumprimento da ordem judicial inicial, que não atingiram a fase de análise documental. Assim, processos judiciais de 2020 ou 2021 ficaram travados pela modulação do STF, enquanto outros resultantes de ações de 2022 estão tramitando. O desacerto decorreu do poder que o MEC tem em relação à tramitação dos processos administrativos. É inegável que o MEC conduz os processos, porque é inclusive dever de ofício. No caso, a atividade administrativa é plenamente vinculada.

Processos que tiveram a análise documental antes da cautelar do STF também estão sujeitos a esse poder-dever, o chamado impulso oficial. Havia o risco dos procedimentos que já haviam ultrapassado a fase de documentos serem retardados e não chegarem à análise definitiva e ao estágio mais protegido pela decisão cautelar: a condição de curso avaliado e com portaria publicada. Essa ameaça também se concretizou, tal como em princípio constatada em processos judiciais que tramitam em primeira e segunda instâncias.

Situação atual das análises

Na realidade, desde agosto de 2023, nenhum pedido de autorização de Medicina havia sido analisado e, nos últimos 30 dias, apenas dois processos de cursos públicos — não atingidos pela cautelar do STF – e um de curso privado foram concluídos. A omissão alcança seis meses. E se isso não bastasse, o único pedido privado “analisado” foi indeferido com base em uma decisão sumária – o indeferimento consta da Portaria 148, de 16 de abril de 2024.

Como a autorização indeferida foi requerida em 2022, coerente afirmar que a análise teria sido inusitadamente acelerada. Há processos mais antigos que ainda não foram concluídos, alguns deles com ordens judiciais contra atrasos. A inversão na ordem pode ter ocorrido em razão de uma decisão judicial permitindo a realização de exame vestibular. Um desembargador federal decidiu autorizar o vestibular antes que a portaria fosse emitida, em virtude da reiterada inércia do MEC e das avaliações satisfatórias já existentes. Só então o Ministério da Educação acelerou o processo para negar a dita portaria.

Com isso, o MEC teria aparentemente tentado sinalizar um recado, no sentido de que não adiantaria abrir processo seletivo por ordem judicial, dado que controle do fluxo e o resultado dos processos depende do próprio MEC. De fato, mostrou que nem mesmo avaliações impecáveis garantiriam segurança jurídica.

Nesse contexto, optou por encaminhar reclamações constitucionais para tentar impedir dois outros vestibulares. Seguiu diretamente à Suprema Corte na expectativa de livrar-se das medidas impostas pelos juízes de 1ª instância e tribunais federais. A estratégia foi temerária, até recém-formados evitariam esse caminho: não se saltam instâncias recursais.

Semana passada, duas das reclamações já foram decididas e o resultado foi, justamente, a verificação de que houve uma tentativa de queimar etapas, usando-se a reclamação como substituto de recursos. Além disso, foi reconhecido que as decisões sobre realização de exames vestibulares são coercitivas ou sub-rogatórias lícitas — decisões que visam, apenas, fazer cumprir ordens judiciais que estão sendo descumpridas — e que não contrariam o julgado do STF.

Indício de desajustes na tramitação dos pedidos

Diante do posicionamento firme do STF, o MEC talvez possa completar a transição feita no início deste ano e abandonar de vez práticas que se revelam improdutivas e que fomentam a litigiosidade. Está bem nítido que a atuação corretiva do Judiciário é um fato, comprovado no caso dos vestibulares e em vias de acontecer no caso do menoscabo para com a ordem cronológica dos processos.

A situação, que espelha a prática de anos na área de medicina, demonstra inclusive que o STF pode ainda aprimorar sua decisão na ADC 81 e na ADI 7.187, traçando uma data determinada ou relativa apenas aos processos judiciais, deixando de lado fluxos administrativos, que sempre poderão seguir roteiro menos célere. Medida necessária e justificável. O risco de atrasos e a falta de isenção já se materializou com problemas reais.

Em palavras simples, desde 2023 o MEC parece dissolver a fidúcia que lhe teria depositado o STF. Nesse sentido, e por isso, as intervenções aqui noticiadas. Ordens judiciais contra atrasos, somadas a medidas coercitivas e reclamações negadas, são indício forte de desajustes na tramitação dos processos administrativos.

Em um contexto assim, a prudência e a lógica devem ser complementadas pela rigorosa aplicação do Direito. A discricionariedade não é ilimitada; em dizeres mais condizentes com um mundo digital, “não pode servir de senha para travar processos eletrônicos”. Afinal, a discricionariedade administrativa é só uma ferramenta para cumprimento da lei, que é vontade geral, a usarmos a imagem de J. J. Rousseau, o filósofo de Genebra.


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