Autorizações de cursos de medicina

JOTA • 25 de setembro de 2024

Fonte da Notícia: JOTA
Data da Publicação original: 19/09/2024
Publicado Originalmente em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/educacao-democracia-sociedade/autorizacoes-de-cursos-de-medicina

A autorização para abertura de novos cursos e para aumento de vagas em cursos existentes de medicina tem sido objeto de uma batalha jurídica que põe em risco a qualidade da educação e a saúde pública, e fragiliza as legítimas expectativas dos estudantes.

A criação do Programa Mais Médicos, em 2013, alterou a sistemática das autorizações para a abertura de cursos de medicina no Brasil. O Estado passou a direcionar a formação de médicos para as regiões com maior necessidade desses profissionais, por meio de editais de chamamentos públicos.

De 2013 a 2018, 3 editais promoveram a criação de 66 cursos de medicina, todos em municípios com efetiva necessidade social. A política regulatória para autorização desse tipo de curso passava a ser integrada com a política de saúde pública, com previsão de contrapartida ao Sistema único de Saúde (SUS) e expansão de residências médicas.

Em 2018, sob a justificativa de analisar a necessidade da continuidade da política, a gestão do MEC, à época, suspendeu o lançamento dos editais de chamamento público. Tal medida perduraria por 5 anos e ficou conhecida como “moratória”. Essa paralisação abriu uma janela jurídica para que as instituições de educação superior pleiteassem junto ao Judiciário o processamento administrativo de pedidos de novos cursos de medicina, por fora da Lei dos Mais Médicos.

Em janeiro de 2023, estavam abertos no MEC 370 processos de abertura ou aumento de vagas por determinações judiciais. O pleito faria aumentar em 60 mil o número de vagas para cursos de medicina em todo o Brasil.

A título de comparação, naquele período existiam 42 mil vagas autorizadas em todo o sistema federal. E naquela ocasião não havia um regime jurídico em vigor para estabelecimento de um padrão decisório para análise desses pedidos, visto que a Lei dos Mais Médicos tinha uma sistemática totalmente diversa, pela via dos editais, e as normas regulatórias gerais não se aplicavam ao processamento de novos cursos de medicina, ainda vetados pela moratória.

ADC 81

Com o objetivo de sanear e retomar o ambiente regulatório, a Advocacia-Geral da União (AGU) impetrou, em maio de 2023, uma medida cautelar no âmbito da Ação Direta de Constitucionalidade 81, ajuizada pela Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup). Tal medida requereu a suspensão dos processos judiciais e administrativos de abertura de cursos e/ou aumento de vagas de medicina que não tivessem sido precedidos de chamamentos públicos.

Em agosto do mesmo ano, o ministro Gilmar Mendes proferiu decisão cautelar na qual deferiu parcialmente o pedido, determinando (i) a manutenção dos novos cursos de medicina já instalados por força de decisões judiciais; (ii) o seguimento dos processos administrativos pendentes que tivessem ultrapassado a fase inicial de análise documental (na prática, que estivessem na fase de avaliação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, o Inep); e (iii) o sobrestamento dos processos administrativos que não tivessem ultrapassado a fase de análise documental.

Aqui cabe destacar um ponto essencial: a partir dessa decisão, passou a existir um parâmetro decisório para esses pedidos. O ministro Gilmar Mendes determinou que a análise dos processos deveria considerar se o município e o novo curso de medicina atendiam integralmente aos critérios previstos nos parágrafos 1º, 2º e 7º do art. 3º da Lei 12.871/2013.

Estavam restabelecidos, em grande parte, os paradigmas da Lei dos Mais Médicos, com o MEC e o Ministério da Saúde devendo verificar a relevância e a necessidade social da oferta de curso de medicina no município; a existência, nas redes de atenção à saúde do SUS, de equipamentos públicos adequados e suficientes para a oferta do curso de medicina, dentre outros critérios.

No curso de julgamento da ADC pelo plenário do STF, o ministro relator proferiu decisão cautelar complementar, para determinar que o trâmite deveria contemplar uma fase para que as instituições tivessem a oportunidade de comprovar a existência de interesse social em sua pretensão.

Os termos da decisão cautelar seriam posteriormente referendados pela maioria do Plenário do STF, que proferiu o julgamento final em junho de 2024.

Retomada da política e das análises administrativas

O MEC, a partir de 2023, encerrou a moratória e retomou o Mais Médicos com a publicação dos Editais 1/2023, que tornou pública a realização de chamamento público para a seleção de propostas para autorização de funcionamento de cursos de medicina em âmbito nacional, e 5/2024, para habilitar instituições de educação superior mantidas por mantenedora de unidade hospitalar para autorização de funcionamento de curso de graduação em medicina.

A partir da decisão cautelar e do julgamento da ADC 81, foram estabelecidas também as premissas jurídicas para o seguimento dos processos administrativos que haviam ultrapassado a fase inicial, que totalizavam 190 pedidos, com aproximadamente 35 mil vagas solicitadas.

O MEC divulgou em portaria o fluxo administrativo e decisório para atender as determinações do STF (fluxo esse referendado pelo próprio Tribunal), e tem dado andamento às análises e decisões dos pedidos judicializados. Até o momento foram decididos 73 dos 190 processos o que representa 38,95% da demanda, com 35 deferimentos e 38 indeferimentos, totalizando autorizações para 1.990 novas vagas.

O processo de análise desses pedidos envolve diferentes fases e atores com atribuições específicas:

  • Avaliação pelo Inep
  • Manifestação do Conselho Nacional de Saúde;
  • Prestação de informações pelo Ministério da Saúde sobre necessidade social e existência de leitos e campos de prática; e
  • Manifestação da instituição interessada sobre os dados prestados pelo Ministério da Saúde e apresentação dos termos de adesão do gestor local do SUS.

Apenas após essas fases o MEC está apto a proferir a decisão administrativa. O processo é necessariamente complexo, em razão da natureza dos cursos de medicina e dos fluxos determinados pelo STF. O objetivo é garantir a qualidade do curso, a segurança do sistema de saúde e os objetivos e ditames da Lei dos Mais Médicos.

Nova guerra de liminares

Apesar do avanço das análises dos pedidos administrativos, algumas instituições têm buscado consolidar nas instâncias inferiores do judiciário uma narrativa de morosidade do órgão regulador e deturpado o conteúdo da decisão do STF para solicitar autorizações judiciais para a abertura de vestibulares e início dos cursos antes da decisão do MEC.

Estão em vigor no momento 29 decisões liminares nesse sentido, concentradas em poucos magistrados, que totalizam autorizações judiciais precárias para a oferta de 3.430 vagas de medicina.

A oferta desses cursos sem a finalização da análise do MEC quanto à qualidade, necessidade social, existência de campo de prática e viabilidade do curso tem um potencial de causar sérios danos ao sistema de saúde pública e caos no sistema regulatório e concorrencial.

Alguns desses cursos são autorizados por decisões monocráticas em localidades que não têm campo de prática para receber os alunos. Há ainda uma corrida para burlar o ambiente concorrencial: instituições que estão atrás na fila de análise, passam na frente e ocupam leitos do SUS na região de saúde que deveriam ser disponibilizados para cursos de instituições que ajuizaram as ações antes.

Para além disso, os estudantes dos cursos abertos por decisões liminares e que venham ser indeferidos administrativamente não poderão ter aproveitamento dos estudos até então realizados, nem ser transferidos para outras instituições (não existem vagas ociosas em outras instituições regulares para receber esses alunos).

A autoridade regulatória do MEC

A Constituição estabelece que o ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as condições de cumprimento das normas gerais da educação nacional e de autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.

A omissão do Estado na gestão da política de abertura de cursos de medicina criou um ambiente que demandou a intervenção do judiciário no sistema. A partir de 2023, no entanto, o MEC retomou o exercício de suas atribuições e responsabilidades na matéria, e o órgão máximo do Judiciário assentou as balizas para o saneamento do sistema.

A Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior do MEC é o órgão regulador responsável pela análise dos atos autorizativos da educação superior, a partir dos ditames da LDB, da Lei do Sinaes e de outras normas específicas (no caso da medicina, a Lei dos Mais Médicos).

As decisões administrativas são tomadas a partir da expertise do seu corpo técnico, das manifestações formais dos demais órgãos envolvidos, da consideração de todo o sistema regulatório da educação superior, e devidamente referendadas pela Consultoria Jurídica junto ao MEC, órgão da AGU.

As decisões liminares que permitem a abertura de cursos sem autorização do MEC e sem atendimento aos critérios da Lei dos Mais Médicos desafiam as determinações do STF e as atribuições constitucionais do MEC, e põem em risco o sistema de saúde pública, o ambiente concorrencial e os sonhos de milhares de estudantes.

A qualidade da educação e a higidez do sistema regulatório demandam – principalmente nos casos dos cursos de medicina – que sejam resguardadas as competências do Poder Executivo federal.

O Ministério da Educação seguirá adotando as medidas judiciais cabíveis para que seja resguardada a sua autoridade regulatória, e para que os cursos de medicina sejam autorizados com segurança jurídica e com garantia da qualidade, visando também a proteção dos direitos dos estudantes e de suas famílias.


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