REVISTA ENSINO SUPERIOR • 14 de agosto de 2025
Fonte da Notícia: REVISTA ENSINO SUPERIOR
Data da Publicação original: 11/08/2025
Publicado Originalmente em: https://revistaensinosuperior.com.br/2025/08/11/o-dilema-de-usar-ia-na-sala-de-aula/
A inteligência artificial generativa entrou nas instituições de ensino superior de todo o país, mas, em geral, não foi pela porta principal. Ela não esperou por reformas curriculares, por aprovações de comitês, ou mudanças de políticas institucionais. Foi mesmo pelas mãos de estudantes e de professores, no dia a dia das salas de aula, que ela foi incorporada nas graduações e pós-graduações Brasil afora.
Para os gestores cabe agora tomar decisões. Não se trata mais de permitir ou não o uso, mas de até que ponto a IA vai transformar os processos administrativos, de ensino-aprendizagem e o próprio perfil de pessoas que vão ser formadas ao final dos cursos. Embora sejam escolhas que todos devem tomar, não há um caminho único, nem resposta que sirva a todos.
Dora Kaufman, professora da PUC-SP e autora dos livros A inteligência artificial irá suplantar a inteligência humana? e Desmistificando a inteligência artificial, recomenda que as IES criem seus próprios comitês. A pesquisadora diz que devem ser comitês multidisciplinares, pois os problemas e soluções envolvem todas as áreas do saber, as etapas da educação e a comunidade.
“Ainda hoje poucas IES do mundo criaram mecanismos para governança. A universidade precisa primeiro de governança: criar princípios para a utilização da IA em todos os níveis”, recomenda. Para que isso aconteça, os atores devem ser ouvidos e, a partir do uso real que já está sendo feito, pensar nas soluções possíveis e nas questões éticas. Apenas a partir de princípios organizados é que se colocam questões de ordem mais prática, como comprar soluções, de quais empresas, se vale a pena desenvolver internamente.
Faz parte dessa governança discutir mudanças de metodologias. Segundo Dora, infelizmente, esse tipo de discussão ainda é incipiente. Os professores estão aproveitando como usuários básicos; os alunos também. “Temos de capacitar sobre o que é IA, oferecer uma literacia para professores de todas as áreas. Como faz parte dessa governança discutir mudanças de metodologia, eles devem entender o que significa a IA para o professor e para o aluno. Por exemplo, quais os riscos de pedir um plano de aulas para uma IA?”
A professora ressalta ainda que, embora as IAs gerem textos, imagens e sons, elas não são verdadeiramente criativas, porque apenas se aproveitam de uma série de elementos já criados por humanos. Compreender isso é importante para que a IA seja encarada como uma boa “parceira”, mas reconhecendo que não terá uma ideia inovadora, nem poderá ser responsabilizada por uma decisão. O desenvolvimento pessoal e profissional nos bancos universitários depende de sair do simples “como usar IA” para a reflexão de “como manter o controle humano ao usar IA”, defende Dora.
IA em cinco áreas
Há situações em que o professor pede para um sistema inteligente propor uma tarefa; os alunos usam um sistema para responder a essa tarefa e, depois, o professor incumbe um outro (ou mesmo) sistema para corrigir as entregas, de forma que a interação e a participação humanas são mínimas durante todo o processo. Admitir que a IA entrou na educação não implica uma desresponsabilização sobre o que está sendo feito dela. Ao contrário disso, o desafio é criar modelos educativos que proporcionem experiências significativas e resultem em melhorias observáveis de competências.
Embora seja um desafio diário para as IES do Brasil, não é só no país que as universidades precisam se transformar. “Harvard criou a metodologia de aprendizagem baseada em casos, copiada no mundo todo. Mas, hoje, o estudante joga o caso na ferramenta de IA, pede para criar algumas perguntas para poder participar na aula (e ganha nota de participação por isso). Depois, entrega um trabalho feito pela IA. Muitos querem manter esse modelo, resistir, mas o caminho é mudar a metodologia”, explica Maurício Garcia, cientista digital e conselheiro acadêmico do Inteli, da Agroavance, e do Conselho Editorial da Ensino Superior.
Garcia acredita que, dentro do pilar acadêmico, há cinco áreas para se pensar no uso da IA. A primeira é: como ajudar os estudantes a aprender; aqui entram ferramentas como bots assistentes e objetos inteligentes. Depois, deve-se discutir como ajudar o professor em suas rotinas, o que implica formas de planejar, produzir conteúdo e fazer correções. “A IA pode fazer os alunos aprenderem mais. A espécie humana tem 300 mil anos e nosso cérebro é programado para maximizar as chances de sobrevivência. Isso implica descartar tudo o que não importa. Mas não significa que o cérebro vai ficar ocioso. Todo mundo gosta de aprender e a IA bem aplicada tem o potencial de dar oportunidade para que as pessoas sejam mais curiosas”, afirma.
A terceira área de atenção para implementar a IA de forma produtiva é discutir como usá-la com ética; neste ponto, entram questões de fraude e plágio. E talvez tenha sido por essa vertente que a maioria das IES entrou no tema. Na experiência, Garcia vê que já há instituições brasileiras se debruçando sobre questões nessas três frentes. Ele, contudo, defende que se deve ir além. A discussão de como a IA está mudando as profissões precisa entrar em cada um dos cursos, com suas especificidades. Psicologia ou engenharia, medicina ou moda, docentes de cada curso precisam estudar o impacto que a nova tecnologia está promovendo.
Por fim, a instituição deve escolher se vai capacitar seu estudante para ser um usuário crítico de IA, ou se deve dar um passo a mais e prepará-lo para ser um criador de novos agentes de IA. “Todos vamos viver num mundo com IA. Mas, a partir disso, há dois caminhos. A escolha é se queremos que nossos estudantes sejam capazes de criar ferramentas específicas, com aplicações em suas áreas, ou se vão apenas usar o que for feito por outros. No Inteli, nossa escolha é formar os builders”, diz Garcia.
O Inteli é uma IES focada em cursos de TI que trabalha por projetos. A cada módulo, os estudantes precisam encontrar soluções para problemas reais e podem usar IA livremente, ou criar novas aplicações para ela. Mas o conselheiro garante que essa não será uma função restrita aos cientistas da computação, pois vai se tornar cada vez mais fácil conseguir operar no mundo digital com conhecimentos básicos de programação.
“Eu mesmo mantenho um projeto para estimular que educadores construam agentes inteligentes; a ideia é criar um repositório colaborativo, em que as pessoas produzam e disponibilizem para os demais. Não é muito complicado”, diz. Garcia exemplifica que um professor de sociologia poderia usar a teoria de Durkheim para criar um bot que simulasse uma conversa com o pensador já morto. Usando essa base, um pedagogo poderia fazer o mesmo com Piaget e assim por diante. O repositório, com soluções para montar cursos com Aprendizagem Baseada em Problemas e de avaliação, pode ser acessado gratuitamente em solvertank.tech/solveredu.
Mudança cultural
Do marketing ao financeiro, passando pela captação de alunos, há soluções capazes de otimizar o trabalho de todos. “Como gestor, eu economizo mais de um terço do meu tempo; uso IA para tarefas como definir emails prioritários, preparação de agenda, organização de projetos”, cita Luiz Claudio Costa, criador do primeiro curso de graduação em Inteligência Artificial do Brasil, em 2018, reitor do Centro Universitário IESB.
“Dá certo, mas tem de ouvir as pessoas, entender do que elas estão precisando em suas tarefas; um gestor não pode decidir sozinho. Antes da ferramenta, é preciso definir o que vai ser construído. Abraçar a mudança cultural é mais importante do que escolher entre diferentes soluções de mercado”, diz o reitor.
Entusiasta da IA, em 2000, quando ainda trabalhava na Universidade Federal de Viçosa, Costa criou um grupo de pesquisa em redes neurais artificiais e um dos seus projetos usava dados climáticos e do solo na irrigação. “O que o estudante de computação na época levou mais de um ano para fazer, com os mesmos dados, hoje obtenho a mesma resposta em 40 minutos. E posso escrever em português”, cita ele.
Costa criou o curso em IA por perceber que não se tratava de uma moda, mas de uma onda inescapável. E, na instituição que comanda, há desde 2020 uma comissão institucional de IA. “Ela envolve professores e servidores das várias áreas. Vou escolhendo estrategicamente os profissionais para fazer parte e, em conjunto, decidimos sobre formas de uso, critérios éticos e sociais. Não quero implementar IA para demitir, mas para deixar as pessoas mais produtivas”, afirma o reitor, que prepara o lançamento do livro O impacto da inteligência artificial na humanidade. Explorando educação, saúde, ética, economia, emprego, inovação e poder.
Segundo Costa, ao aproveitar a IA, sua faculdade está muito mais ágil para responder aos estudantes. Havia questionamentos que precisavam transitar por vários setores – financeiro, coordenador, secretaria acadêmica – e, por mais ágeis que os funcionários fossem, sempre havia alguma demora; hoje está tudo integrado e rápido. “Com um agente de IA, ele tem uma resposta em 30 segundos”, relata.
Os processos ainda têm sido feitos sob supervisão humana para garantir a confiabilidade. Outra preocupação constante é a segurança dos dados, porque as IES concentram informações sensíveis sobre milhares de pessoas. “Um fornecedor nessa área tem de ser uma empresa séria, com referências, que dialogue com sua equipe. Quanto aos dados, eu defendo que têm de ficar na nuvem da instituição”, recomenda.
Para os professores, Costa aconselha liberdade: “A gente tem de sensibilizar, mostrar o potencial, mas não dá para ter um pacote pronto.” O reitor garante que com qualquer um dos grandes modelos de LLM do mercado, como ChatGPT, Gemin ou DeepSeeker, é possível melhorar muito a experiência de ensino-aprendizagem com baixo custo. E com uma abordagem propositiva, tem vencido resistências à mudança. “Mostro que é possível fazer um assistente personalizado para cada turma, como é possível passar a trabalhar com o desenvolvimento individual dos estudantes, construir avaliações únicas. Os professores estão fazendo maravilhas”, finaliza.