ABRAFI • 03 de outubro de 2025
Fonte da Notícia: ABRAFI
Data da Publicação original: 03/10/2025
Publicado Originalmente em: https://www.abrafi.org.br/
Educação superior: qualidade não se impõe por decreto
Paulo Chanan*
Nos últimos anos, o Brasil tem assistido a uma sucessão de novos marcos regulatórios voltados à educação superior. A cada mudança, renova-se a promessa de que a mera publicação de regras será suficiente para corrigir fragilidades, assegurar padrões de excelência e impulsionar a formação de profissionais preparados para os desafios contemporâneos. No entanto, a realidade insiste em demonstrar o contrário: a multiplicação de normas não se traduz, automaticamente, em melhoria de qualidade na oferta dos cursos.
É compreensível que, diante de problemas reais, como desigualdade de acesso, fragilidades em determinados cursos e a necessidade de alinhar a formação às demandas da sociedade, o poder público busque respostas. Mas quando as soluções apresentadas se concentram quase exclusivamente na edição de novas normas, cria-se uma falsa sensação de avanço. Especialmente se os novos regramentos não incidem sobre estruturas e lacunas que perpetuam um ciclo de baixa qualidade e ausência de supervisão.
Não há dúvida de que a qualidade na oferta da educação superior passa pelo tripé regulação, avaliação e supervisão. Contudo, as ações nessas três esferas precisam estar alinhadas de modo que uma não sobreponha ou até mesmo desqualifique as demais. E esse é um desafio a ser superado quando o país opta por uma sucessão de novas normativas muitas vezes desconexas do cenário global.
A educação superior é um dos setores mais regulados do Brasil. Existem portarias que tratam de critérios de acesso e manutenção para a oferta da educação superior, diretrizes gerais e específicas para cada curso, parâmetros para polos de educação a distância, regras sobre carga horária, presencialidade, estágios, extensão, pós-graduação, além de exigências crescentes em relação a relatórios e protocolos administrativos. Ainda assim, algumas das deficiências persistem. Isso evidencia que não é na quantidade de regras que reside a solução, mas na qualidade delas e na efetividade do acompanhamento das suas determinações.
Em outra frente, possuímos uma das estruturas de avaliação mais robustas do mundo: o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes). Criado em 2004, ele contempla dimensões institucionais, de cursos e de desempenho discente. Instrumentos como o Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), as avaliações in loco conduzidas pelo Inep e a autoavaliação institucional oferecem um conjunto amplo de informações sobre a realidade do setor, além de inúmeros indicadores que servem de base para que as instituições induzam melhoria de qualidade contínua em suas atividades.
Contudo, brechas na estrutura regulatória comprometem que instituições com desempenho ruim no processo avaliativo sejam submetidas aos mecanismos de supervisão. Por exemplo, ao obter um resultado insatisfatório no Conceito Preliminar de Curso (CPC), a instituição tem a possibilidade de anular esse desempenho se apresentar uma performance positiva em outro indicador: o Conceito de Curso (CC). Essa solução consiste em uma grande jabuticaba no regramento da área, daquelas que só existem por aqui mesmo.
Ao permitir esse artifício, os órgãos reguladores não apenas comparam indicadores de natureza diferentes, como alimentam um eterno looping, perpetuando baixa qualidade e formação deficitária. Desempenho ruim em determinado indicador deve ser sanado com desempenho satisfatório nesse mesmo indicador. Isso, sim, pode gerar indução de qualidade.
Último ponto abordado, mas nem por isso menos relevante, a supervisão é outro pilar crucial para a promoção da qualidade na oferta da educação superior. Não basta medir, produzir indicadores e firmar planos de melhoria. É preciso uma atuação mais incisiva por parte do Ministério da Educação quando o assunto é supervisão. Além de firmar o Termo Saneador, que identifica pontos críticos e oferece caminhos efetivos de superação, precisa haver aplicação de medidas cautelares normatizadas e mais duras em todos os casos, sem exceção, e não eventualmente, como prevê a legislação atual, vez que a fase da avaliação formativa já foi vencida quando da reavaliação com protocolo de compromissos.
O problema não está na ausência de mecanismos de avaliação ou na falta de indicadores, mas no uso que se faz deles. Por outro lado, com frequência, boa parte dos resultados levantados tanto nas avaliações externas do Inep quanto nos relatórios de autoavaliação ficam restritos a documentos técnicos ou são utilizados para punir, sem gerar políticas efetivas de indução à melhoria contínua. Se fossem tratados como bússolas para a regulação, os dados coletados pelo poder público serviriam para orientar instituições, estimular boas práticas e corrigir rotas de maneira efetiva.
Em muitos casos, as instituições privadas enfrentam dificuldades não pela falta de normas, mas pela ausência de clareza na interpretação e pela demora em obter respostas dos agentes reguladores. Quando a supervisão é lenta, burocrática ou distante, cria-se insegurança regulatória. O resultado é a inibição de investimentos, a retração na inovação pedagógica e, em última instância, prejuízo ao estudante.
Se o Brasil deseja consolidar uma educação superior de qualidade, é preciso inverter a lógica: menos ênfase na edição de normas genéricas e mais foco no aprimoramento das existentes, além do efetivo aproveitamento e aplicação dos processos de avaliação e supervisão.
A história recente mostra que aumentar o número de normas ou trocá-las não melhora a educação superior. Qualidade não se impõe por decreto. Ela nasce do compromisso de gestores, professores e estudantes, e se consolida quando o Estado exerce seu papel de regulador com inteligência, equilíbrio e visão de futuro.
*Presidente da Associação Brasileira das Faculdades.