Ensino sob desconfiança, prenúncio de crise

REVISTA ENSINO SUPERIOR • 21 de outubro de 2025

Fonte da Notícia: REVISTA ENSINO SUPERIOR
Data da Publicação original: 14/10/2025
Publicado Originalmente em: https://revistaensinosuperior.com.br/2025/10/14/ensino-sob-desconfianca-prenuncio-de-crise/

Por Marina Feferbaum, Clio Nudel Radomysler, Enya Carolina Silva da Costa, Heloisa Salles Camargo e Mitiko Nomura

Historicamente, a confiança pública no ensino superior expressa a crença de que universidades produzem um bem comum. Mas essa percepção tem mudado. Pesquisas recentes mostram uma queda acentuada nesse sentimento. Segundo o Gallup Poll Social Series, entre 2015 e 2023, a confiança no ensino superior norte-americano caiu de 57% para 36%. O que antes era visto como um dos pilares da vida democrática, espaço privilegiado de formação profissional e cidadã, agora enfrenta questionamentos sobre seu papel e sua relevância social.

Essa é uma das questões que movem a pesquisa “Abertura ao diálogo em universidades de referência” desenvolvida pelo Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da Fundação Getúlio Vargas (CEPI-FGV), em parceria com a Fundação Lemann. No artigo anterior, Do Black Lives Matter a Gaza: reflexões dos campi norte-americanos sobre diálogo em tempos de tensão, exploramos como os campi dos Estados Unidos se tornaram arenas de disputa sobre liberdade de expressão, justiça racial e polarizações políticas. Desta vez, o olhar se volta a uma questão que atravessa todos esses debates: a confiança pública nas universidades e o que ela revela sobre o papel dessas instituições em meio a tensões sociais.

Por que a confiança está em queda?

As razões são múltiplas. No contexto norte-americano, estudos apontam diferenças entre republicanos e democratas. De um lado, parte do público republicano enxerga as universidades como espaços “muito liberais”, acusando-as de doutrinar estudantes ou restringir opiniões divergentes. Já entre os grupos democratas, as críticas se concentram no alto custo, na lentidão das reformas, na falta de representatividade e na dificuldade de garantir empregabilidade.

Por outro lado, dentre as motivações para confiança nas universidades, tanto entre democratas quanto republicanos, estão: experiências pessoais positivas, a crença de que as faculdades são essenciais para a nação, a qualidade do ensino e o valor do diploma para conseguir um emprego melhor. Em menor grau, aparece a capacidade das universidades de ensinar a pensar de forma crítica e aberta a diferentes pontos de vista.

Esses dados evidenciam um desafio central: como preservar a legitimidade das universidades como espaços de debate e diálogo quando elas próprias se tornam alvo de disputas políticas e ideológicas?

Liberdade acadêmica sob tensão

Nesse contexto, a abertura ao diálogo emerge como tema sensível. Até que ponto as universidades devem ser abertas a todos os discursos? Há pluralidade de pensamento ou doutrinação ideológica? Nos EUA, episódios envolvendo palestrantes polêmicos de extrema direita e protestos estudantis reacenderam o debate sobre os limites da liberdade acadêmica. Um dos principais embates contemporâneos está na tensão entre a defesa da liberdade de expressão e a preocupação de que certos discursos possam ameaçar o bem-estar dos estudantes, especialmente de minorias.

A liberdade acadêmica, entendida como o direito de pesquisar, ensinar e se expressar sem censura institucional, é um valor fundamental. Ela garante que o conhecimento avance livre de interferências externas, sejam elas políticas, religiosas ou econômicas. Mas também há limites éticos e sociais. Quando discursos ferem a dignidade de grupos minoritários, a universidade se vê obrigada a ponderar entre proteger a pluralidade de ideias e assegurar a integridade da comunidade acadêmica.

O equilíbrio entre debate e segurança é, portanto, necessário para restaurar a confiança social. Ambientes capazes de acolher divergências sem silenciar vozes vulneráveis são cruciais para restaurar a confiança pública e fortalecer a vida democrática.

Neutralidade ou posicionamento institucional?

Outro impasse contemporâneo diz respeito ao papel institucional das universidades diante de temas controversos. Devem se manter neutras ou assumir posicionamentos públicos?

Casos como os protestos do Black Lives Matter e a guerra entre Israel e Hamas reacenderam pressões para que universidades se manifestassem. Alguns autores defendem que as instituições só devem adotar posições públicas quando diretamente relacionadas à sua missão de ensino, pesquisa e extensão, evitando tornar-se agentes políticos. Para outros, a total neutralidade pode ser ilusória, o conhecimento acadêmico é inevitavelmente político: envolve escolhas éticas, prioridades de pesquisa e compromissos sociais. Assim, manter credibilidade não significa omitir-se, mas agir com transparência e coerência sobre os valores que orientam cada decisão.

Assumir posicionamentos coerentes com os valores institucionais, como proteger grupos vulnerabilizados e combater práticas discriminatórias, pode reforçar a confiança da comunidade. A credibilidade das universidades nasce não apenas de sua excelência acadêmica, mas da percepção de que agem com integridade e compromisso público.

Reflexões quanto ao contexto brasileiro

Ainda que o cenário norte-americano apresente particularidades, muitos dos dilemas são familiares ao contexto brasileiro. Redução nas matrículas, episódios de censura, ataques a professores e tentativas de interferência política mostram que a confiança institucional é um ativo frágil, que precisa ser continuamente cultivado.

Em tempos de desinformação e polarização, as universidades brasileiras são chamadas a comunicar com clareza suas escolhas, resultados e valores. Mais do que se defender de críticas, podem reafirmar sua relevância social como espaços de inovação, diversidade e formação de profissionais capazes de promover mudanças sociais positivas.

Fortalecer o diálogo interno, reconhecer a pluralidade e comunicar à sociedade o valor público da universidade são passos importantes para evitar que a desconfiança corroa um dos espaços mais essenciais da vida democrática: aquele onde se aprende a pensar criticamente, a ouvir o outro e a construir conhecimento coletivo.


Restrito - Copyright © Abrafi - Todos os direitos reservados