Liberdade nasce da educação

REVISTA ENSINO SUPERIOR • 21 de outubro de 2025

Fonte da Notícia: REVISTA ENSINO SUPERIOR
Data da Publicação original: 13/10/2025
Publicado Originalmente em: https://revistaensinosuperior.com.br/2025/10/13/liberdade-nasce-da-educacao/

Por Miguel Copetto*

As universidades sempre foram instituições em movimento. Movimento de ideias, pessoas, línguas e horizontes. Desde a sua origem na Idade Média, elas atravessaram impérios, fronteiras, guerras e transformações profundas sem perder aquilo que as torna únicas: a confiança na razão, o valor da dúvida e a dignidade do conhecimento. São uma das raras criações humanas capazes de unir passado e futuro, memória e inovação, tradição e mudança.

Mas o mundo mudou — e continua mudando com uma velocidade inédita. O avanço tecnológico, a hiperconectividade, a crise de confiança nas instituições, a fragmentação política e a reconfiguração das relações de poder global criaram um cenário novo, incerto e muitas vezes inquietante. Em meio a essas tensões, é legítimo perguntar: o que significa ser universidade hoje? E, mais ainda: o que significa internacionalizar a universidade neste tempo?

Internacionalizar não é apenas enviar estudantes ao exterior ou assinar convênios formais. Internacionalizar é assumir uma posição no mundo. É reconhecer que o conhecimento é um bem público global e que a cooperação científica é uma das formas mais poderosas de diplomacia civilizatória. Em um tempo de muros, internacionalizar é construir pontes. Em tempos de desinformação e medo, é afirmar confiança na inteligência, no diálogo e na liberdade intelectual.

Experiência formativa e civilizacional

Nas últimas décadas, a internacionalização do ensino superior tornou-se um fenômeno global. Segundo a Unesco, mais de seis milhões de estudantes cursam graduação ou pós-graduação fora de seus países de origem — eram menos de meio milhão há cinquenta anos. A OCDE projeta que, em 2030, esse número ultrapassará oito milhões, com uma presença crescente de estudantes da Ásia, África e América Latina.

Esses números, porém, só ganham sentido quando entendemos o que realmente circula: não apenas fluxos econômicos, mas circulações de pensamento. Cada estudante que parte leva consigo uma cultura, uma língua e uma maneira de interpretar o mundo. Cada estudante que regressa retorna transformado — com o hábito da comparação, o respeito pela diferença, a capacidade de duvidar de si mesmo e a maturidade de aprender com essa dúvida.

Essas competências invisíveis — pensamento crítico, empatia cultural, discernimento ético — são exatamente as que mais faltam no século 21. Nenhuma inteligência artificial as reproduz. Por isso, a internacionalização, em seu sentido mais profundo, é uma escola de humanidade. Ela forma cidadãos do mundo, capazes de compreender a complexidade e recusar o fanatismo.

Reconfiguração geopolítica e as universidades

Internacionalizar hoje é muito diferente de internacionalizar há vinte anos. O mundo vive uma transição geopolítica profunda. Os centros de poder se deslocam, as alianças mudam e emergem novos blocos estratégicos, muitas vezes definidos mais por interesses do que por valores, refletindo rivalidades crescentes e diferentes visões da ordem mundial.

Não vivemos mais uma lógica bipolar de ideologias, mas uma competição multipolar por influência, tecnologia, dados, energia, infraestrutura digital e — sobretudo — talento humano. O conhecimento se tornou um recurso geopolítico.

Nos últimos cinco anos, o mundo testemunhou o aumento de conflitos armados — mais de 180 em 2024, segundo o Programa de Dados sobre Conflitos de Uppsala, da Universidade de Uppsala — e um retrocesso democrático em mais de 60 países, de acordo com o Instituto Variedades da Democracia (V-Dem Institute), da Universidade de Gotemburgo. Em várias regiões, e inclusive em países que antes considerávamos que estes problemas nunca poderiam vir a ocorrer, a liberdade acadêmica está sendo restringida: pesquisadores são vigiados, universidades pressionadas, a ciência confundida com militância.

Quando a universidade perde liberdade, a sociedade perde a capacidade de pensar. E uma democracia sem pensamento crítico é apenas uma formalidade vazia.

Resistência civilizada

Diante desse cenário, internacionalizar não é um luxo — é uma forma de resistência civilizacional. Resistir à ignorância, ao autoritarismo e à fragmentação do mundo.

As universidades não comandam exércitos nem controlam fronteiras. Mas possuem algo raro, a sua credibilidade moral. Quando duas universidades cooperam, dois países se aproximam. Quando pesquisadores compartilham resultados, dissolvem-se desconfianças. E quando estudantes convivem, aprendem que o outro não é ameaça — é descoberta.

A cooperação acadêmica é uma forma de política sem armas. E talvez a mais duradoura.

Força econômica e social

A internacionalização também possui uma dimensão econômica e social. A educação superior é hoje um dos maiores setores de mobilidade global. Em 2024, gerou mais de 150 bilhões de dólares em impacto econômico direto e indireto, segundo a OCDE, a Unesco e o Banco Mundial.

Mais importante, a economia do conhecimento se tornou a base da inovação e da produtividade nas nações que apostam na educação. Universidades geram talento, pesquisa, tecnologia, startups, ecossistemas. Mas o valor essencial da internacionalização não se mede em divisas — mede-se em dignidade.

Estudantes internacionais não são consumidores. São portadores de futuro. E políticas públicas sérias devem tratá-los assim, com equidade, reconhecimento mútuo de diplomas, bolsas de mérito e mobilidade real — não apenas retórica.

América Latina e Europa: um pacto birregional de futuro

América Latina e Europa compartilham raízes históricas, culturais e linguísticas. Mas compartilham também um desafio, que é reconstruir a confiança num mundo em desconfiança.

O Espaço Comum de Educação Superior ALC-UE pode ser mais do que um projeto técnico. Pode ser um pacto civilizacional. Um pacto baseado na ciência, na cultura, na ética. Um projeto de futuro partilhado.

Hoje, cerca de 350 mil estudantes e docentes circulam anualmente entre as duas regiões. É promissor — mas insuficiente. Precisamos de mais redes institucionais de longo prazo, currículos integrados, investigação conjunta, inovação compartilhada, confiança recíproca. Não se trata apenas de mobilidade. Trata-se de soberania cognitiva partilhada.

Liberdade acadêmica, democracia e responsabilidade pública

Internacionalizar é também proteger a liberdade. Democracia e ciência alimentam-se mutuamente. Onde há pensamento crítico, há cidadania. Onde a universidade é livre, a sociedade resiste à manipulação.

A liberdade acadêmica é reconhecida pela Unesco e pelo Scholars at Risk como um dos indicadores mais precisos da saúde democrática. Não por acaso, os países que mais cooperam internacionalmente são os que mais protegem a autonomia universitária.

A geografia da ciência coincide com a geografia da liberdade.

Por isso, internacionalizar é defender a democracia global. É criar redes de confiança onde antes havia fronteiras, garantir que o conhecimento permaneça como uma das poucas linguagens que não se ajoelha diante do poder, e afirmar que a universidade tem um papel público insubstituível, ser voz de consciência num mundo em dissonância.

A universidade não pode ser neutra. Porque a neutralidade, diante da verdade, é uma forma de omissão. Mas deve ser prudente, ética e exemplar.

Cultura universitária como cosmopolitismo ativo

A universidade é, talvez, a mais antiga forma de cosmopolitismo. Desde Bolonha e Salamanca até Coimbra e Bogotá, sempre funcionou como ponte entre o local e o universal.

Hoje, quando o mundo se fragmenta em blocos rivais, a universidade permanece um dos últimos espaços onde a humanidade ainda pode falar com uma só voz.

A cooperação entre América Latina e Europa pode ser um modelo de civilização compartilhada.

Um modelo que uma tradição e criatividade, método e imaginação, ciência e humanismo. Um modelo que mostre que é possível crescer sem dominar, competir sem excluir, inovar sem perder a alma.

A universidade deve ser esse lugar. Um espelho lúcido do mundo, capaz de pensar com liberdade, ensinar com responsabilidade e cooperar com esperança.

Num planeta onde o ruído substitui o diálogo e a velocidade apaga a memória, precisamos recuperar o tempo do pensamento.

Preservar a paz e a lucidez

As universidades não podem impedir as guerras. Mas podem impedir o esquecimento. Podem lembrar, a cada geração, que a ignorância é o inimigo mais antigo da paz, e que nenhuma fronteira é mais perigosa do que aquela que separa o conhecimento da consciência.

Internacionalizar é educar para a lucidez. É ensinar que a liberdade não é um dado garantido, mas uma construção diária. E que a paz não é a ausência de conflito — é a presença da razão.

Em um mundo onde a informação é abundante, mas a sabedoria é escassa, as universidades devem permanecer em movimento — não para seguir a direção do poder, mas para manter acesa a chama do discernimento.

Porque o verdadeiro papel da universidade não é dizer ao mundo o que ele quer ouvir, mas recordar-lhe o que ele precisa saber: que a liberdade nasce da educação. Que a democracia vive do conhecimento. E que a paz é a forma mais elevada da inteligência.

*Miguel Copetto é diretor executivo da Associação Portuguesa de Ensino Superior Privado. O texto acima é resultado de reflexão apresentada no âmbito da VI Cúpula Acadêmica América Latina–Caribe–União Europeia, realizada em Bogotá, em outubro de 2025.


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