Saldo de inadimplência do Fies subiu de R$ 2,5 bi para R$ 6,6 bi em dois anos

G1 • 20 de setembro de 2021

Fonte da Notícia: G1
Data da Publicação original: 17/09/2021
Publicado Originalmente em: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2021/09/17/mais-de-1-milhao-de-formados-estao-ha-mais-de-3-meses-sem-pagar-o-fies.ghtml

A taxa de inadimplência do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) voltou a subir no Brasil. Em junho deste ano, de 1.996.082 contratos já na fase de pagamento da dívida, 1.040.484 (52,1% do total) tinham atraso de mais de 90 dias nas prestações, segundo dados divulgados semestralmente pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) obtidos pela TV Globo via Lei de Acesso à Informação.

De acordo com o órgão, o saldo devedor de todos os quase 2 milhões de contratos em fase de pagamento é de R$ 71,9 bilhões, mas o montante que já deveria ser pago e que está em atraso era de R$ 6,6 bilhões em junho.

O valor é 164% mais alto que o de abril de 2019, quando o Ministério da Educação lançou o primeiro programa de renegociação do Fies. Na época, os 567 mil ex-alunos que estavam inadimplentes somavam juntos um saldo devedor de R$ 2,5 bilhões.

Atraso de mais de 90 dias

O FNDE considera como “inadimplente” apenas quem está com atraso de mais de 90 dias no pagamento das prestações mensais. Atualmente, 17 estados e o Distrito Federal já estão com mais da metade dos contratos nessa condição.

O estado com a taxa mais baixa é Santa Catarina (23,6% de inadimplência), e o mais alto é o Amapá, onde a quantidade de contratos com atraso chegou a 76,4%.

‘Meu nome está restrito e não consigo negociar’

A frase acima, da paranaense Carla Fabíola, de Londrina, resume a situação de mais de 1 milhão de ex-estudantes pelo Brasil. Ela contraiu uma dívida de mais de R$ 10 mil num período de 10 anos de amortização para cursar licenciatura em educação física. Mas perdeu o emprego quando engravidou e, atualmente, segue desempregada.

A mineira Michelle Alves de Oliveira, de 35 anos, por sua vez, acabou não conseguindo se formar em biomedicina por causa de problemas com a burocracia do Fies. Mas ainda precisa arcar com a dívida contraída nos semestres cursados. Sem trabalhar na área, ela acabou ficando com as prestações atrasadas, e diz que o problema virou um trauma durante uma entrevista de emprego para um cargo de vendedora. “A psicóloga da empresa em que fiz entrevista fez consulta no Sistema de Proteção ao Crédito e me mostrou na entrevista”, conta ela sobre a situação.

Atualmente, ela diz que a dívida pelos dois anos de faculdade cursados está em R$ 24 mil. Ela conta que hoje está “num poço sem fim” e tenta arrumar um emprego para poder contratar um advogado e tentar, ao menos, limpar seu nome.

O impacto da pandemia

O nome sujo também custou o sonho da casa própria à paulistana Luana Cristina dos Santos, de 31 anos. Ela financiou R$ 15 mil pelo Fies, a serem pagos em sete anos, como forma de pagar uma parte da mensalidade do curso de administração de empresas na capital. Durante a faculdade, ela conseguiu um estágio e depois foi efetivada, mas o marido acabou perdendo o emprego durante a pandemia. Com isso, ela não consegue pagar todas as contas da casa, os custos extras dos dois filhos, um deles recém-nascido, e ainda ter dinheiro sobrando para as parcelas mensais de R$ 280.

Como seu nome ficou negativado pela dívida, ela acabou perdendo uma oportunidade de comprar um imóvel pelo Minha Casa, Minha Vida. “Como meu marido saiu do emprego, a gente queria ter dado entrada com o FGTS dele numa casa, porque eu pago aluguel. Mas não consegui porque o Fies me deixa restrita”, relata.

Esforço para pagar a dívida em dia

Quem ainda não atrasou os pagamentos precisa apertar cada vez mais os cintos durante a pandemia. O Congresso Nacional chegou a aprovar uma lei suspendendo os pagamentos do Fies durante a pandemia, mas o prazo da suspensão durou apenas seis meses. Uma nova lei prorrogando o prazo ainda está em discussão.

David Jones, de 26 anos e filho de um faxineiro, só conseguiu usufruir de três meses de suspensão, antes que as prestações voltassem a aparecer. Em 2018, ele se formou em direito em São Paulo graças ao Fies, mas ainda não consegue trabalho na área porque a pandemia adiou sua prova da segunda fase do Exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Enquanto isso, ele, que já foi estagiário da Defensoria Pública do Estado de São Paulo, hoje trabalha como atendente de telemarketing.

O salário não é suficiente para custear suas necessidades básicas e a dívida estudantil. “Eu era novo ainda, tinha 17 para 18 anos, não sabia dessas coisas. O banco falou: ‘olha, vai ter esse contrato aqui, as parcelas vão ficar 200 e pouquinho’, mas hoje estou pagando e não sei o que aconteceu porque a prestação foi R$ pra 400.”

Hoje, ele conta com ajuda de custo do sogro, com o apoio esporádico da avó para conseguir os materiais de estudo para obter sua inscrição na OAB, e corta gastos onde pode. Em agosto, ele e a esposa se mudaram de uma casa com aluguel de R$ 650 pra outra que custa R$ 500.

A estudante Yanna Freire, de 26 anos, ainda nem conseguiu o certificado de conclusão do curso de fisioterapia no Ceará, mas já precisou pagar no mês passado a segunda parcela do Fies. A moradora de Ubajara precisou adiar o fim da faculdade por problemas que teve durante uma gravidez e cumpriu os últimos créditos no primeiro semestre. A faculdade, no entanto, ainda cobra R$ 800 por essa última disciplina, e o banco começou em julho a cobra R$ 900 mensais.

“Para falar a verdade, eu quase entro em depressão por conta desta dívida. É o segundo mês que me cobram sem eu estar trabalhando e sem eu ter recebido o meu diploma. Não posso deixar sujar o nome da minha fiadora e isso é muito frustrante para mim”, diz Yanna. “Eu fui ao banco para tentar renegociar a dívida, mas me disseram que isso não é com eles, teria que resolver com o governo. E agora não sei o que fazer.”

Renegociação depende do governo federal

Para Rodrigo Capelato, diretor-executivo do Semesp, entidade que representa mantenedores de ensino superior, o programa atual de renegociação precisa de melhorias. “O sistema de cobrança é falho. Acaba sendo um programa engessado, às vezes o aluno nem recebe a cobrança, nem sabe que está inadimplente. Mas, quando ele fica inadimplente, ele tem pouquíssimos canais de renegociação”, explica.

O primeiro programa de renegociação, de 2019, estava previsto para durar três meses, mas o governo acabou dobrando o prazo devido à baixa adesão. Entre abril e outubro daquele ano, apenas 2% dos inadimplentes conseguiram cumprir os critérios da renegociação, e o MEC anunciou que conseguiu reaver 14% do saldo devedor de R$ 2,5 bilhões.

Em outubro de 2020, uma nova rodada de negociação foi aberta, com quatro opções de adesão, com parcelamento em até 175 parcelas (mais de 14 anos) e descontos de entre 25% e 100% dos encargos como juros e multa por atraso. O prazo do programa terminou em 31 de janeiro, e o FNDE não divulgou quantos estudantes aderiram à renegociação.

À TV Globo, o órgão informou no último dia 3 que “está em estudo pelas áreas técnicas do FNDE uma nova renegociação de dívidas do Fies”, mas não há previsão de quando ela será ofertada aos devedores.

Capelato afirma que o modelo brasileiro de financiamento estudantil, apesar de ter contribuído para ampliar o acesso de estudantes de classe baixa ao ensino superior, teve crescimento descontrolado em 2013 e 2014, o que acabou colapsando o sistema. Ele defende que o programa seja retomado, mas com ampliação gradual e uma perspectiva diferente sobre a capacidade de pagamento da dívida no futuro.

“No modelo da Austrália”, cita ele, “você condiciona o pagamento futuro à renda. Aqueles alunos que tiverem maior sucesso e renda maior pagam um percentual maior e num tempo mais curto. E os que não atingirem renda mínima, não vão ser cobrados enquanto não atingirem uma renda mínima para serem cobrados. A dívida não é perdoada, ele vai ficar com a dívida até morrer, mas, quando ele conseguir, ele paga. Conseguiu renda? Paga. Não conseguiu? Não paga, mas não é considerado inadimplente.”

Como funciona o Fies

O Fundo de Financiamento Estudantil é o programa pelo qual o governo federal paga as mensalidades de estudantes de graduação em instituições privadas de ensino superior enquanto eles cursam a faculdade.

  • Para participar, o estudante precisa estar matriculado em uma instituição que aderiu ao programa, além de apresentar os documentos exigidos e firmar um contrato de financiamento no Banco do Brasil ou na Caixa Econômica Federal;
  • O financiamento pode ser só de um valor parcial da mensalidade ou integral, e não é preciso financiar todos os semestres da graduação;
  • Após a formatura, existe um período de carência antes de que os formados precisem começar a pagar pelo valor financiado;
  • Após o período de carência começa a fase de amortização, na qual o ex-estudante paga ao banco mensalmente as prestações do financiamento, com juros mais baixos do que nos financiamentos privados;
  • Mas, caso o ex-estudante não consiga pagar a prestação, ele depende que o próprio governo federal abra programas de renegociação, já que não é possível renegociar a dívida individualmente nos bancos;
  • Entre 2010 e 2014, o Fies foi reformulado e passou por uma expansão que fez o número de contratos crescer exponencialmente. Depois, o programa passou por novos ajustes quanto aos critérios para adesão das faculdades, dos estudantes e das condições de pagamento da dívida.

São Paulo tem maior taxa de inadimplência do país

Em São Paulo, a situação é ainda pior porque algumas faculdades que atraíram estudantes com a promessa de pagar o Fies não cumpriram o combinado.

A psicóloga Aline Gonzaga de Farias foi uma das pessoas atraídas pela promessa da faculdade de pagar o financiamento ao governo federal no lugar do aluno. Agora, quatro anos após a graduação, ela deve R$ 186 mil pelo financiamento estudantil.

"Descobri essa dívida quando fui em uma loja fazer uma compra, e aí fiquei sabendo que meu nome estava sujo", contou ela em reportagem do SP1.

De acordo com Aline, para que a instituição arcasse com os custos, era exigido que o aluno fizesse serviço social, mantivesse as notas altas e não ficasse de dependência em nenhuma das disciplinas do curso.

Tatiane Aparecida Gonzaga, irmã de Aline, estudou na mesma universidade e se submeteu às exigências da instituição. Enfermeira por formação, mas sem uma ocupação profissional, ela tem uma dívida de R$ 104 mil.

"Um sonho que virou um pesadelo e engessou a gente de todas as formas, porque, dependendo da empresa, consulta nosso nome no SPC -- serviço de proteção ao crédito, que reúne informações de adimplência e inadimplência de pessoas físicas e jurídicas -- e não contrata, tentamos fazer qualquer financiamento e não conseguimos", desabafa.

Responsabilização legal

Segundo Kelly Lemos, advogada das irmãs e de outros alunos na mesma situação, as faculdades descredenciaram os alunos do programa "Uniesp Paga", alegando que eles não cumpriram critérios de bom desempenho. Só que as exigências foram alteradas com os contratos já assinados.

"No decorrer do processo, eles aumentaram cláusulas dificultando, alterando o tipo de requisito que deveria ser cumprido, incluindo cláusulas altamente abusivase mais difíceis de serem cumpridas", explicou à reportagem.

No início de 2020, o Ministério Público de São Paulo (MPSP) entrou com uma ação na Justiça para responsabilizar o grupo Uniesp, dono de várias faculdades, pelas dívidas de 49 mil ex-alunos com o Fies. A Justiça estima que, juntos, eles devam R$ 2.011.190.417,30.

A dívida bilionária puxa a inadimplência em São Paulo, segundo balanço que o Fundo Nacional para Desenvolvimento da Educação (FNDE) faz a cada 6 meses.

Dados obtidos através da Lei de Acesso à Informação (LAI) mostram que o estado tem mais contratos não pagos do que a média nacional, pelo menos desde 2018.

Para o sindicato que representa as faculdades particulares, a pandemia também contribui para esse aumento.

"Como o aluno tem que pagar depois de um prazo de carência, esse aluno foi pego justamente em um momento que o mercado de trabalho estava totalmente retraído, que é o momento de pandemia. Então ele começa a não pagar porque tem que dar prioridade às necessidades mais essenciais.

Pelo menos no caso dos ex-alunos da Uniesp, a Justiça já determinou que a universidade limpe os nomes deles até que a ação movida pelo MPSP seja julgada.

O que diz a Uniesp

Em nota, a Uniesp falou que o programa "Uniesp Paga" foi encerrado em 2014. Hoje se chama "Uniesp Pode Pagar" e custeia o Fies de 3.851 ex-alunos que cumpriram exigências contratuais. 413 destes contratos já foram quitados.

A instituição diz ainda que está cumprindo sua parte no termo de ajustamento de conduta assinado com o Ministério Público e também com o Fundo Nacional para Desenvolvimento da Educação (FNDE). E que os estudantes que estão processando a universidade não cumpriu com os requisitos do contrato e por isso os financiamentos deles não foram pagos.


Restrito - Copyright © Abrafi - Todos os direitos reservados